O compromisso do Estado em defesa do saneamento básico

 

Águas cinzas do setor Santa Luzia, na Cidade Estrutural, no Distrito Federal: modelo de privatização do setor para comunidades pobres do país é questionado por iniciativas como o Observatório Ondas. Foto: Ricardo Moretti
Águas cinzas da Chácara Santa Luzia, na Cidade Estrutural, no Distrito Federal: modelo de privatização do setor para comunidades pobres do país é questionado por iniciativas como o Observatório Ondas. Foto: Ricardo Moretti

Brasília, 3 de maio de 2024.

Professor titular aposentado da Universidade Federal do ABC – UFABC e professor visitante da UnB, tendo feito toda a sua trajetória acadêmica na Poli-USP, o engenheiro civil Ricardo Moretti é um pesquisador agudo da área do saneamento brasileiro. Crítico ao modelo de saneamento em vigor por meio da Lei 14.026/2020 em diversos artigos publicados recentemente, ele considera que o Estado brasileiro foi responsável, recentemente, por grandes avanços na área, embora haja muito a fazer, em especial para atendimento da área rural e das populações carentes, em geral. Moretti ressalva que a atual modelagem, calcada na outorga onerosa desenvolvida pelo setor privado junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, não oferece incentivos efetivos para promover a universalização desse serviço. Conselheiro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e Saneamento – Ondas, entidade que atua de forma autônoma e conjunta com instituições acadêmicas e movimentos sindicais e sociais de todo o país, ele defende que o Confea participe deste debate essencial.


Confea – Quais os principais gargalos do novo marco do saneamento?
 

Eng. Ricardo Moretti – Basicamente, o déficit do saneamento está nos lugares onde o saneamento pode ser considerado um negócio difícil. Ou porque é caro ou porque a expectativa de receita é baixa. No caso dos grandes centros, principalmente nas favelas e periferias. E do ponto de vista nacional, nas regiões Norte e Nordeste, com muita concentração na área rural, especialmente nessas regiões. Genericamente, o saneamento é um negócio mais difícil onde estão as pessoas pobres. O Novo Marco visa acelerar o processo de privatização do saneamento, o que já era possível conforme a Lei nº 11.445/2007, modificada pela Lei 14.026/2020. Existem vários sistemas operados pela iniciativa privada, baseado naquele marco antigo. É o caso de Manaus, em que esse modelo existe há 24 anos, mas que, passados 20 anos, atingiu apenas 12% de tratamento dos esgotos. O novo marco induziu e acelerou a privatização dos serviços. Juntamente com essa lei, questiona-se o financiamento do BNDES, por outorga onerosa: o serviço é repassado para os operadores privados por uma parte significativa dos recursos que serão utilizados para adquirir a concessão. Se o processo de concessão fosse feito pela menor tarifa, os valões das contas de água e esgotos seriam substancialmente menores. Os governadores e prefeitos se interessam pelo modelo de outorga onerosa à vista pois têm acesso a uma grande massa de dinheiro – em alguns casos, o valor da outorga onerosa tem valores da ordem daquele que está previsto para ser investido em dezenas de anos pelo operador privado. Esses recursos entram à vista, diretamente nos cofres públicos dos estados e municípios, sem o compromisso de serem investidos em saneamento e, com esse aporte, é inevitável que as empresas pressionem pelo aumento das tarifas. Estamos vendo o que isso está resultando no Rio de Janeiro, serviços deficitários que comprometem a saúde da população. Os prefeitos e governadores estão preocupados em receber o valor da outorga para ter dinheiro para fazer obras de grande visibilidade, que a população gosta. Estados e municípios têm poucos recursos do Pacto Federativo. Estados vislumbram a possibilidade da entrada desse dinheiro, então esse pagamento à vista é cruel porque é o que o governo precisa para outras obras, ele não tem compromisso com o saneamento, e o dinheiro fica no caixa do concedente. Já temos vários casos em que outorga supera o valor de investimento em 15 anos, mas isso é feito com dinheiro público, que vai ter que ser pago com tarifas. Caso precise retomar o serviço privatizado, teria que devolver esse dinheiro numa bolada. É o que estamos vendo na Inglaterra. Então esse dinheiro alivia o caixa dos estados e municípios e não vai para investimentos em saneamento. A outorga onerosa se torna uma dívida contraída pelo Estado ou Município, a ser paga pela tarifa, que tende a aumentar pelo acréscimo dos encargos da outorga. Outro gargalo é que a Lei 14.026 fala em 90% da coleta e tratamento.  Para alguns municípios, esse valor é insuficiente. Para outros, é impossível de alcançar. Para dez por cento da população que não estão atendidos a situação é péssima. Mas também pode ser péssima para todas as pessoas. Supondo-se que na região metropolitana de São Paulo o tratamento dos esgotos seja feito com 90% de eficiência e atenda 90% dos moradores, ainda assim teremos esgotos lançados sem tratamento nos rios correspondente a quatro milhões de pessoas – ou seja, o Rio Tietê, que tem baixa vazão nos meses secos, vai continuar seriamente poluído. Outro ponto a destacar é a necessidade de garantir a qualidade do abastecimento pois é grave o problema de intermitência do abastecimento de água, em especial nas áreas mais pobres. Deve incluir ainda a redução de perdas e de melhoria dos processos de tratamento, conforme o Artigo 11-B da Lei 14.026/2020. Em algumas regiões onde não interessa o investimento, a vazão é pequena, falta água. Na região norte, até mesmo os índices previstos na lei não são factíveis em nove anos. E o pior é que nesses lugares que precisam de mais investimentos, o investimento é menos convidativo na ótica financeira. Outra questão é a interceptação das ligações irregulares de esgotos nas redes pluviais. A quem interessa interceptar a ligação clandestina? Na ótica da saúde pública, interessa a todas as pessoas. Na ótica dos negócios não interessa nem para o município, nem para a concessionária. A empresa privada vai mexer?

Professor visitante da UnB e aposentado na UFABC, o engenheiro Ricardo Moretti atua como conselheiro do Ondas
Professor visitante da UnB e aposentado na UFABC, o engenheiro Ricardo Moretti atua como conselheiro do Ondas

Confea – Como a integração da engenharia com políticas púbicas como a saúde e educação pode contribuir para melhorar o saneamento básico brasileiro?

Eng. Ricardo Moretti – A Engenharia precisa se integrar ao esforço para fazer valer os direitos humanos à água e ao saneamento. E esse esforço é multissetorial. Em muitos casos, por exemplo, a solução do esgotamento sanitário depende da previsão de habitação, para viabilizar a construção dos coletores troncos nos fundos de vale. Essa integração entre as políticas setoriais vai ser bem mais complexa com a operação privada dos serviços de água e esgotos. Atualmente 75,7% da população dispõem de esgotamento adequado e 96,9% recebem abastecimento de água adequado. Para se chegar e até superar as metas previstas na lei, será necessário tomarmos o saneamento pela ótica de direitos humanos e saúde pública, que consideram a necessidade de universalizar mesmo. Atender a todo mundo, inclusive quem não pode pagar. Apesar de ainda longe do ideal, os investimentos do Estado brasileiro possibilitaram esse avanço, em relação ao Censo de 2010. Os recursos, no entanto, continuam privilegiando algumas regiões, em detrimento do Norte e do Nordeste, que continuam com os piores índices de cobertura. E aí, você pega estados como o Piauí onde 47% da população estão nas faixas de tarifa social, cadastrados no CAD único, com até meio salário mínimo por pessoa. Vários contratos de privatização estabelecem que caso haja mais que 5% de consumidores atendidos por tarifa social, pode-se reajustar a tarifa, como um gatilho automático de reajustes.  Segundo o Cecad 2.0 (NR: Cadastro para consulta, seleção e extração de informações do Cadúnico, ferramenta que permite conhecer as características socioeconômicas das famílias e pessoas incluídas no Cadastro Único (domicílio, faixa etária, trabalho, renda etc.), esses percentuais são irreais. Universalização não é ter cano de água na rua. É ter água sempre e conseguir pagar. Em muitos locais de São Paulo tem rede de água, mas a água não chega. Não interessa atender. Fazem cortes sistemáticos. Entregam com baixa pressão. Isso já é feito. Se tiver água sempre, tem que conseguir pagar. No país, tem muita gente pobre. A forma como está sendo feita a privatização é absolutamente arriscada para a saúde pública. Prejudica a universalização. Nessa altura, o saneamento teria que estar como obra de saúde pública. O município faria planos de recuperação de bacias hidrográficas para fazer com que 100 por cento fossem atendidas e reembolsaria as obras, como é no SUS como a rede privada de atendimento, por atingimento de metas. É necessário repensar o modelo de financiamento do saneamento. E é fundamental retirar as travas que hoje existem para que as empresas públicas tenham efetivo acesso aos recursos públicos, como é caso dos recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço ou do BNDES. Poderiam constituir outro esquema de financiamento. Rever a outorga onerosa, verdadeira barbárie, que faz uma universalização de araque. 90% de rede não é universalização. Um Plano de recuperação de Microbacias tem que estar associado com educação ambiental, com outras políticas públicas, algo que a iniciativa privada não tem condições de fazer. O dinheiro que o BNDES está colocando para financiar as privatizações não está indo para o saneamento. Está indo para os cofres dos concedentes para outras finalidades, ou seja, é um dinheiro que poderia estar indo para o saneamento e que, na prática, está saindo do saneamento. A pressa e urgência com que está se conduzindo a privatização é ouro fator de alto risco – a concessão está se dando com planos de saneamento feitos às pressas, com falhas evidentes. Um contrato feito com base em um plano falho e incompleto é tudo o que uma empresa privada precisa para justificar o não cumprimento de metas, a solicitação de reajustes de tarifas. O que, por sinal, já está acontecendo no Rio de Janeiro.

IBGE e os números do saneamento básico brasileiro: avanços e desafios
IBGE e os números do saneamento básico brasileiro: avanços e desafios



Confea – Qual seria a importância do Confea para essa integração?

Eng. Ricardo Moretti – O Confea poderia contribuir questionando os modelos de privatização que estão sendo praticados. Estamos privatizando com selvageria. Tem que ter planos de investimento. Eles estão fazendo a toque de caixa, sem discussão, planos com erros primários que vão ensejar todo tipo de questionamento por parte de quem vai receber a concessão. Questionar a forma como está se dando esse processo nesse afogadilho. Existe uma ansiedade para botar a mão nos recursos da outorga onerosa. Os atuais governadores e prefeitos talvez não se interessassem em privatizar, mas precisam desesperadamente de recursos e a concessão por outorga onerosa é um convite escandaloso para a obtenção de recursos. As metas de universalização são apenas retóricas. Então, é preciso discutir os modelos de privatização. O Confea pode ajudar, questionando o modelo como está sendo feita a concessão, sem uma avaliação imparcial sobre em quais circunstâncias ela é realmente vantajosa para a efetiva universalização. Sem isso, afinal, toda a população vai ser afetada por uma concessão mal feita. O Confea podia também ajudar no debate sobre a integração entre as políticas públicas, prevendo outro modelo de financiamento para o saneamento, com maior integração aos investimentos de saúde e educação. 

Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea