Confea apoia engenheira civil vítima de discriminação racial em Minas

Engenharia Civil Fabiane Jardim: respeito
Engenharia Civil Fabiane Jardim: respeito

Brasília, 19 de agosto de 2021.

O princípio da igualdade de acesso a direitos sociais, econômicos, políticos e culturais é uma das bases do Estado Democrático de Direito. Mas a realidade do país ainda está longe de colocar essa teoria em prática, sobretudo em relação às pessoas negras. Na última segunda-feira (16), a Diretora de Prevenção da Defesa Civil do município mineiro de Contagem, eng. civ. Fabiane Jardim, foi mais uma vítima dessa rotina.

Negra, mãe de dois filhos, a belo-horizontina conta a seguir que teve muita dificuldade para se formar, já com mais de 30 anos, na mesma cidade, em 2020. Mas nunca havia passado por uma situação como a enfrentada na Unidade de Atendimento Integrado de Contagem, quando foi fazer a segunda via de um documento de identificação. Fabiane descreve que teve sua identidade étnica agredida, ao ser informada por um funcionário que sua foto não poderia ser aceita, devido às tranças de seu cabelo. 

O presidente do Confea, eng. civ. Joel Krüger, lamentou o episódio, descrevendo que o Sistema precisa se unir à sociedade para que atos como estes se tornem mais raros. "A busca pelo respeito entre os profissionais e futuros profissionais com suas diversidades culturais, étnicas, de gênero e de orientação sexual deve ser uma preocupação permanente, em favor de uma convivência que deve contribuir para a tolerância entre toda a sociedade. Sabemos que esse processo é lento, mas desejamos fazer o possível para reverter essa realidade, a partir desta situação discriminatória enfrentada pela engenheira Fabiane", comenta.

Presidente Joel Krüger: apoio à diversidade no Sistema
Presidente Joel Krüger: apoio à diversidade no Sistema

“Valorizamos indistintamente a participação das mulheres e buscamos a defesa dos direitos de todos os profissionais do Sistema, por isso, manifestamos o nosso repúdio a qualquer forma de discriminação”, considera a gerente de Relacionamentos Institucionais do Confea e secretária executiva do Programa Mulher, eng. eletric. Fabyola Resende. A seguir, Fabiane explica um pouco como está sendo enfrentar esse momento.

Confea – Gostaria que você descrevesse o que aconteceu na Unidade de Atendimento Integrado de Contagem e quais as medidas judiciais que você tomou.

Eng. civ. Fabiane Jardim – Fiz um pré agendamento há alguns dias para fazer a segunda via da minha identidade. No dia 16 de agosto, na UAI que fica em um shopping de Contagem, a atendente pediu os documentos pessoais e assim que ela conferiu os documentos, pediu as fotos 3x4. Ela olhou a foto e pediu um minuto, indo a outro departamento. Eu vi que ela mostrou a foto para um rapaz. Depois, ela falou que não aceitaram a foto. Perguntei onde tirar uma foto, estava indo tirar, mas resolvi voltar e perguntar o porquê de não aceitarem a foto. Bati na porta para falar com o responsável, que nesse dia era um investigador da Polícia Civil. Mostrei a foto e ele falou que a foto não estava com nada de errado. Chamou o rapaz que avaliou a foto e perguntou por que não aceitou. No começo, ele não soube explicar. Depois disse que era por causa das tranças. Eu me assustei na hora. O investigador também. Depois, pediram desculpas e falaram que eu podia fazer a identidade. Fiz a identidade e quando terminou o processo de colhimento das digitais, fui até a gerente do UAI e falei que ele praticou uma situação que achei que não foi legal: em pleno século XXI, uma pessoa de cultura de matriz africana, uso desde criança, sendo desrespeitada dessa forma. A gerente me pediu desculpa, aceitei, mas disse que ela deveria orientar esses funcionários para que isso não acontecesse com outras pessoas. Alguns funcionários disseram que acharam a situação muito chata. No meio do trabalho, me senti constrangida e então resolvi fazer o boletim de ocorrência por racismo, era a única alternativa que eu tinha conhecimento. Lavraram como injúria racial. Vim embora e no outro dia fiquei sem saber como ia proceder. Fiquei mal. Não consegui dormir direito. Hoje que consegui almoçar. Muitas pessoas me apoiam, mas vejo comentários dizendo que estou tirando vantagem. Eu trabalho, não tenho motivo para isso. E ontem, meu tio pediu para que eu procurasse o Conselho de Igualdade Racial de Contagem. Procurei e eles estão me auxiliando. Fiz o Boletim de Ocorrência, vou acionar o Ministério Público sobre essa situação. Recebi inúmeros relatos de pessoas que passaram por essa situação, no mesmo lugar. Quando recebi esses relatos, vi que não era só comigo. A maioria falou que não teve coragem de falar, é um ambiente da Polícia Civil. Mas eu leio muito sobre racismo. Sou da luta mesmo. Coloco sempre a minha solidariedade, mas quando a gente vivencia é diferente. Fiquei baqueada, mas eu não poderia ficar em silêncio, pensando em quantas pessoas não podiam exercer a sua cidadania porque não estavam com a foto no padrão deles. Fiquei surpresa e triste que depois a Secretaria Estadual de Planejamento e Gestão emitiu uma nota dizendo que a foto estava com excesso de claridade. Tentaram desqualificar o que eu passei. Se a minha foto estava com excesso de claridade, por que passaram a minha foto? Se tivesse algum erro, não deveria passar. Acho que foi muita maldade. Com a diversidade que temos no país, o mínimo seria prestar um treinamento com as pessoas. A chateação é essa.

Confea – Você já havia passado por alguma situação de preconceito e discriminação racial com essa gravidade?

Eng. civ. Fabiane Jardim – Nunca aconteceu. 

Confea – Durante o curso de engenharia, você vivenciou alguma situação semelhante?

Eng. civ. Fabiane Jardim – Sim, mas foi muito velado. Na minha turma do curso de Engenharia Civil, eu era a mulher mais velha da sala, e no início eu era a única negra da sala. Fiquei sabendo depois que fizeram grupo no WhatsApp, dizendo que eu não passaria do primeiro período. Meu objetivo era apenas terminar a aula e ir embora, sempre trabalhei e estudei à noite. A vida sempre foi difícil, sou mãe de dois filhos.

Confea – E no exercício profissional?

Eng. civ. Fabiane Jardim – Não, nunca tive. Entrei na Defesa Civil como estagiária há três anos. Sempre fui tratada com igualdade, com muito respeito. A Defesa Civil fica no prédio da Segurança Pública de Contagem, junto com a guarda-civil. Entrei como estagiária e graças a Deus tive meu trabalho reconhecido, hoje como Diretora de Prevenção da Defesa Civil. 

Confea – Como você percebe a participação feminina e, especificamente, da mulher negra, no Sistema Confea/Crea?

Eng. civ. Fabiane Jardim – Acho que ainda tem muito silêncio. Às vezes, por medo, às vezes também por vaidade. Nem todo mundo gosta de ser vinculado a questões raciais. Eu trabalho em uma secretaria que tem uma secretária e duas subsecretárias mulheres. A gente tem que sair um pouco dessa caixinha da timidez, do medo, e mostrar que a mulher tem um papel fundamental para a sociedade como um todo. E a participação da mulher negra é muito desvalorizada. Não ocupam a maioria dos cargos de chefia, a maioria não está com os melhores salários, mesmo tendo estudo. Há uma dificuldade grande de valorização pela própria mulher negra. Somos bem atrasados e precisamos crescer nesse aspecto.

Confea – Você acredita que o país possa reverter as práticas de preconceito e discriminação racial?

Eng. civ. Fabiane Jardim – Por eu lutar, tenho que acreditar porque senão, minha luta é em vão. Os amigos do meu filho de 15 anos, todos eles postaram, se solidarizaram comigo. Essa geração vai ter um outro olhar para a questão racial, não vai ter o olhar e o silêncio das gerações passadas. Tem um olhar diferente.

Confea – Qual a importância das políticas afirmativas para isso?

Eng. civ. Fabiane Jardim – São importantíssimas. As políticas públicas têm que afirmar o lugar do povo preto na sociedade, principalmente para o reconhecimento das causas e o respeito. O antirracismo tem que sair um pouco do papel e entrar na prática. Só vai ter isso com as denúncias e reconhecendo a importância da igualdade em relação a esse povo que contribui tanto para o crescimento do país. É uma causa grande, mas resumindo é muito simplório o que a gente quer, queremos respeito, igualdade.

Henrique Nunes
Equipe de Comunicação do Confea

Com a colaboração de Almir Moura, da Divisão de Comunicação e Publicidade do Crea-MG